terça-feira, 22 de junho de 2021

O Diferente

 As Escrituras podem nos tornar assassinos ou sábios. Pelo visto, esta frase foi a que mais impactou os leitores do meu livro nos feedbacks que recebi. Preciso confessar que teve um capítulo que não consegui escrever, que era justamente sobre um assassino.


Foi em 2004 quando ouvi a seguinte palavra no meu coração: “- Cuidado, Hamã no Poder”.  Era uma peça de um quebra cabeça que não conseguia montar, mas a beleza das escrituras consiste nisso: uma mescla de peças que vai se ajustando até formar uma linda imagem. “A vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando até ser dia perfeito” 


1. O Diferente


Imagine-se num lugar onde você é diferente de quase todo mundo e não consegue  se enquadrar naquele padrão. Algumas pessoas te olham meio desconfiadas e outras desejam-lhe a morte. E a coisa se intensifica tanto que uma fake news sobre o seu jeito de ser, bem elaborada, cheia de meias verdades chega até o líder daquele lugar. Agora a sua vida e de todos aqueles que não se enquadram naquele padrão estão condenados à morte. 


 Não é fácil ser diferente num lugar assim e muitas vezes é necessário mentir ou omitir sobre sua identidade. O opressor não tem empatia, apenas a certeza absoluta de que o diferente precisa morrer, por não seguir os padrões absolutos da sua religião.


2. Quem são as personagens:


Ester - uma linda moça que esconde a sua identidade, pois é perigoso ser o que ela era. Casa-se com o rei, omitindo essa informação. 


Mordecai - Não omite sobre quem é, se recusa ser igual a todo mundo e, por ser assim, traz desconforto para aqueles que não pensam como ele, sendo julgado muitas vezes como rebelde, ou algo do gênero.  Discretamente, ele salva o rei de ser morto e ninguém nem faz nada por isso.


Hamã -  Um homem de família, casado com Zeres, pai de 10 filhos. Abaixo do rei, ele era a maior autoridade. Bem sucedido, tinha tanto zelo e amor pelo país que criou um decreto para exterminar um pequeno grupo “rebelde” que agia diferente de todo mundo daquele lugar, prometendo inclusive lucro aos cofres públicos. “E Hamã disse ao rei Assuero: Existe espalhado e dividido entre os povos em todas as províncias do teu reino um povo, cujas leis são diferentes das leis de todos os povos, e que não cumpre as leis do rei; por isso não convém ao rei deixá-lo ficar.


Se bem parecer ao rei, decrete-se que os matem; e eu porei nas mãos dos que fizerem a obra dez mil talentos de prata, para que entrem nos tesouros do rei.” Ester 3:8-9. Pelo menos foi assim que ele se apresentou ao rei, mas a verdade é que Hamã tinha uma raiva mortal de Mordecai e, de forma sutil e ardilosa, transformou uma meia verdade em um decreto de morte. Era o assassino, o vilão dessa trama, mas  ninguém percebia. 


Rei Assuero - Distraído, acaba assinando o decreto de Hamã, porque não pesquisou direito à informação e tudo parece bem: “bora beber e comemorar, afinal é só um povinho sem valor". Que diferença faria para a humanidade? Já que eles não têm nada a agregar, nem  proximidade havia com o povo em questão... - “Sabe de nada, inocente…”



3.  E o que aconteceu? 



Hamã consegue o que quer. O rei assina o decreto de morte aos diferentes.


Só que o Rei Assuero, ao saber que sua linda esposa fazia parte deste “grupo dos diferentes” e, que o homem que tinha lhe salvado não era tão perigoso como Hamã havia “pintado”, ficou desesperado. A lei já tinha sido publicada e não podia ser cancelada. 


Mordecai pediu permissão para criar uma nova lei para que seu grupo se defendesse. Desta maneira, não aconteceu todo o extermínio previsto. Hamã foi enforcado por agir de má fé,  Mordecai assumiu seu lugar no posto,  tudo se resolveu, e as coisas foram devidamente explicadas.


Na verdade, acho que algumas vezes somos como esse rei distraído, que vai aceitando todas essas “meias verdades” passadas por gente mal intencionada, e só bate o desespero quando a gente descobre que alguém da nossa família é alvo de repressão ou até mesmo morte por fugir do padrão.


Só esclarecendo, o contexto original dessa história trata-se de Ester, uma moça estrangeira, judia, de religião monoteísta, que habita num local de uma cultura/religião politeísta, e que se casa com o rei da Pérsia para evitar a destruição do seu povo pelo terrível Hamã. 


Entretanto, ciclicamente ainda vemos esta história se repetir através de outros grupos: negros, judeus, gays, travestis, transexuais,  refugiados, imigrantes, pessoas com deficiência, etc. Atitudes racistas, homofóbicas, xenofóbicas não têm nada a ver com o amor de Deus. Muitas vezes se pensa que isto se refere a um ódio por outra identidade ou expressão do ser, mas é também a discriminação, o julgar como errado, o querer "consertar" a pessoa, o dizer que o espaço dela não é aqui, que deve ser quem realmente é "bem longe". Tudo isto é dar lugar para Hamã reinar, não Deus.  É Hamã no poder.


4. A  história é cíclica e a terra é redonda, não plana.


O espírito de Hamã volta e meia reaparece, como em um dos exemplos mais cruéis e dolorosos da humanidade na política nazista centralizada na figura de Hitler. Palavras bonitas, discursos convincentes de uma falsa superioridade de uma raça ariana para justificar a dominação e o extermínio de grupos. A lista de perseguição nazista não se limitava somente aos judeus, mas também a outros grupos, como homossexuais, ciganos, pessoas com deficiência, etc. Na época, não teve uma Ester para livrar, mas vale citar Alan Turing, que através da decodificação de códigos secretos, estima-se que tenha encurtado a 2º Guerra Mundial em mais de dois anos, e que isso tenha salvo mais de 14 milhões de vidas. Ele foi considerado o pai do computador e sua contribuição foi de grande valor até os dias de hoje. Se você está usando seu smartphone, ele teve uma boa parcela de contribuição no passado. E embora Alan Turing tenha ajudado tanto a humanidade, algo muito injusto aconteceu, ele foi condenado por ser gay. Foi sentenciado a se submeter a uma castração química, uma espécie de “cura gay” da época, e isso foi tão traumatizante para ele, que acabou se suicidando. Os homens o condenaram, mas os feitos dele se eternizaram. Anos se passaram, e os líderes ingleses perceberam o seu erro tardiamente e tentaram se redimir estampando o rosto de Alan Turing na nota de 50 libras. 


Montando esse imenso quebra-cabeças: no mundo sempre haverá pessoas diferentes, cada ser é único, e infelizmente alguns grupos sofrem repressões, tentativas de padronização ou de extermínio. Resta saber se daremos crédito ao decreto de  Hamã (Anticristo, anti-vida), que oprime, ou daremos crédito aos ensinos inclusivos de Cristo, o Autor de vida, que acolhe! 


Em amor,


Lina Linólica 



18/06/2021


 E para quem não leu meu livro "Desconstrução", ele está na Amazon -  e-book via aplicativo Kindle  - https://amz.onl/7yvNaBn



Notinhas que queria pôr no texto, mas que iam se perder na narrativa:


O meu livro “Desconstrução”,  foi um imenso quebra-cabeças que ando montando há anos, mas ainda tem muita coisa a ser escrita. 


Para quem não conhece a narrativa, ela está no livro de Ester, na Bíblia (Velho Testamento). Ela se assemelha a um conto de fadas com rei, rainha, vilão, mocinho e, por isso, assim que ouvi no meu coração essa palavra, escrevi “A Estrela do Oriente”, uma mini novelinha - tá lá no linolica kids - www.linolica.com.br com outras historinhas que escrevia para crianças (isso faz tempoooo)


Fiquei por anos perguntando quem seria o Hamã e assim que ouvi essa palavra no meu coração naquele ano de 2004, eu achei que o tal Hamã era a carne se manifestando na reestruturação da escola onde trabalhava com a demissão de algumas pessoas que aconteceu no ano seguinte. Daí escrevi uma carta para a direção da escola. Foi um desconforto, eu fiquei meio sem entender nada e também a direção não entendeu, o caso foi encerrado. Quando a gente não enxerga a coisa como um todo, acaba pagando esses micos e vive inventando teorias da conspiração. A gente fica procurando a “besta” na forma de gente e não é. Foi pura imaturidade/infantilidade. A escola foi uma bênção na vida dos meus filhos, foi benção na minha vida. Hoje eu vejo que Hamã era o meu “eu” religioso tentando “matar” meu filho gay quando inicialmente orava pela sua cura. A doente ali era eu. 


Estava assistindo a série da Netflix coreana (eita vício) "A Caminho do Céu", e por várias vezes o protagonista Geu Ru monta quebra-cabeças. E assim é a nossa vida. Às vezes a gente não enxerga o todo, só pecinhas e acaba cometendo equívocos. Pelo fato do personagem Geu Ru ser diferente também, já me apaixonei pela série e, por isso, escolhi a metáfora dele para pôr nessa postagem. 


Eu, com minhas peças bíblicas de quebra-cabeças, tentando ler esse livro fantástico como se fosse nos dias de hoje, reparo em uma parábola bíblica que Jesus conta, lá em Lucas 18:11. Dois homens orando. Um deles dizia: "Graças a Deus que não sou como esses", e é claro, tem todo o contexto da época. Mas e se fosse hoje? A oração deste homem seria mais ou menos assim: "Graças a Deus que nasci numa família nobre, sou homem, não sou ladrão, não sou preto, não sou gay. Faço tudo certinho e tá tudo bem, tô de boas.". E tinha um outro que batia no peito: "Senhor, tem misericórdia de mim, que sou pecador". E a imagem que me vem à mente é a do meu ex-aluno que foi preso injustamente, que não cometeu o crime que lhe foi imposto, mas  sua culpa era ser preto, e do homem que foi espancado na rua por simplesmente parecer gay, e da mulher que é violentada a caminho de casa simplesmente por ser mulher. Quantos mecanismos e formas de oprimir são criados por essa sociedade injusta, “quantos são mandados para a vala” só por serem quem são. E Jesus ali, olhando tudo isso, do “lado de fora”, procurando apenas corações solidários para acolher e ajudar a salvar aqueles que estão na mira do alvo.